Jean-Paul seria só mais um dentre milhares de Jean-Pauls a morarem naquela Paris pós-guerra, exceto pelo fato de sua peculiar ocupação: ladrão de covas. Era especialista em arrombar catacumbas e jazigos familiares para surrupiar os pertences de grande valor monetário, os quais eram enterrados com os defuntos da alta sociedade parisiense. Porém, sua discrição e respeito não permitiam deixar os sepulcros abertos. Pá e cimento também compunham seu kit de serviço. Após os furtos, seguia-se a higiene dos objetos, e seqüencialmente sua venda ao mercado negro ou a algum chefão mafioso preocupado em presentear sua senhora. A soma angariada lhe servia para pagar o aluguel da água-furtada que habitava no subúrbio, obter algumas garrafas de Chardonnay e amores comprados.
Batia ponto quase que diariamente no cemitério do Père-Lachaise, e apesar de ser um solitário em sua jornada de trabalho, Jean-Paul, volta e meia, deparava-se com proto-góticos, necromantes (e várias outras designações que este prefixo pode abarcar), estudantes de medicina e anatomistas. Mediante tal diversidade, códigos de conduta foram tacitamente desenvolvidos para o tino social entre tais indivíduos. Possuíam em comum a polidez, empatia e sigilo para com os interesses de cada qual, porém nenhuma palavra era trocada, apenas olhares furtivos. Todos fugiam dos coveiros e dos enterros.
Na terceira semana após a chegada do inverno, Jean-Paul percebeu uma presença que lhe era estranha até então. Terrivelmente feio, sendo sua principal característica o estrabismo, o desconhecido possuía um ar de intelectual e sempre portava um bloco de notas, caneta e cachimbo, o qual, dependendo do dia, era substituído por cigarros. Com o passar das semanas, notou não se tratar de um proto-gótico, visto não trajar sempre vestimentas pretas, muito menos pertencer à trupe dos necros ou médicos, porquanto sua única atividade se limitava a vislumbrar o horizonte e anotar algumas palavras na caderneta, fato que deixava Jean-Paul em completa curiosidade.
Em certa ocasião, como se não pudesse mais sustentar o desejo de saber das atividades do misterioso homem, o gatuno aproximou-se impulsivamente, sem saber exatamente como engatar uma conversa. Eis as palavras tropeçadas e ditas por Jean-Paul ao desconhecido de rosto horrendo e olhos assimétricos:
"Difícil agüentar os outros, não é mesmo? Por isso que prefiro os cemitérios, calmos e tranqüilos, onde todos os seus moradores estão ardendo nas grelhas do inferno."
Para grande frustração do ladrão de covas, o estranho se reservou a tão somente arquear as sobrancelhas, entreabrir os lábios e escrever alguma coisa em seu livrete de registros.
WTF, Charlie Brown!
Há uma semana