quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sobre a arqueologia cíclica das relações afetivas

Mamãe conheceu papai por causa do clima e de um defunto. “Tá quente aqui, né?” A pergunta clássica para quebrar silêncios nem sempre constrangedores. Não aconteceu em um elevador. Foi no cartório. 17/10/1971. 15:51h. Ela datilografava. Ele cuidava do óbito do bisavô. Não fumavam, mas saíram para tragar um Marlboro. Depois, um café. Em seguida, um cinema, mas não viram o filme. Este acabou e tomaram seu rumo, com a promessa de se encontrarem outro dia, o qual chegou, que foi certa tarde de domingo, e acabou, e tornaram a prometer e encontrar, prometer e encontrar.

Mamãe engravidou e casou. Nessa ordem. Ao som de Song Sung Blue e a marcha de Mendelssohn da suíte de Sonho de uma Noite de Verão. Respectivamente. Papai fecundou-a em Fevereiro. As bodas foram em Junho. Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e nasceu Alceu. Na seqüência, os gêmeos Olavo e Orestes. E àquela época, os casais já não tinham filhos em número de dois dígitos. Como última tentativa, planejaram o derradeiro rebento, na esperança de nascer uma menina, desejo de mamãe. Mas eu nasci. E me chamaram de Benedito.

Mamãe não me odiou por frustrá-la. Muito pelo contrário, a todos parecia que sua preferência recaía sobre mim. “Amo-os da mesma forma”, dizia ela, me entregando sempre o melhor e maior pedaço das guloseimas, mimando-me gratuitamente, defendendo-me das investidas dos irmãos mais velhos, ou de qualquer um que ousasse encostar as “patinhas” em mim. Obviamente os comentários, por vezes, tomavam rumos e tons maldosos. “O menino é estranho”, “É o jeito que a mãe o trata”, "É a filha que não teve". Isto tudo apenas porque preferia ficar junto à mamãe e entre outros seres do sexo feminino, ou na companhia de um livro, ao invés de me entregar aos jogos e esportes. Mas enfim, com o passar do tempo aprendi a assumir que as atividades desportivas não me apeteciam e declarar que tudo o que envolvia o intelecto era incrivelmente mais encantador. Dos mimos de mamãe herdei a inclinação por querer sempre tudo do melhor: comida, roupas, companhias. Fui o único, entre os irmãos, a ter um curso superior. Medicina.

Eu conheci Heitor por causa do clima e de um defunto. Meu pai morreu, e para agradar mamãe (eu era o único a morar sob o mesmo teto que ela, ainda) fui tomar as providências cabíveis. “Está quente. E o crepe, sendo um tecido muito leve, é totalmente adequado para o trabalho formal. Bela camisa!”. Ele datilografava, e interrompeu o processo para me olhar. A eternidade durou 4 segundos. Esbocei um sorriso, o qual foi retribuído. Ele fumava, e aquela foi a minha segunda experiência com cigarros. E a terceira, dentro de um quarto pago e barato. Ao final do maço, tomamos nosso rumo, com a promessa de nos encontrarmos outro dia, o qual chegou, que foi certa tarde de domingo, e acabou, e tornamos a prometer e encontrar, prometer e encontrar...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sobre o grande dia daquele cara

É. Já o vi por aí. Não recordo exatamente onde. Poderia ter sido em qualquer lugar que freqüento; sempre os mesmos, vale ressaltar. Aquele bar no centro, há outro na orla, e a universidade, sem contar algumas festas pessoais invadidas por penetras, que são quase como se fossem realmente convidados.

Eu diria que é um tipinho bem peculiar, com uns cabelos castanhos queimados do sol, a pele idem (desconfio que seria branco, se morasse mais ao sul), e olhos de cor indefinida entre o verde e o castanho. O esquerdo, às vezes, ficava um pouco estrábico. Nariz levemente torto e adunco – diziam que era seu charme. Lábios finos, no entanto bem desenhados. Magro, com definição muscular. Fazia certo sucesso entre as garotas. Estava sempre a sorrir, raramente viam-no sério. Usuário semanal de cânhamo, assim como a maioria dos seus amigos. Tinha a mania de falar utilizando o plural em substantivos que deveriam estar no singular. Diziam que vinha de berço de ouro. Aparentemente tentava ocultar tal informação a todo custo. Acredito que fosse motivo de grande embaraço para ele, visto que tentava demonstrar desprendimento para com o materialismo mundano. Nascera para abismar, bem ou mal, em instâncias mínimas e com pequenos atos, pessoas que estavam além do seu círculo de amizades (e ao usar adjetivos de proporção, penso na sua relatividade). Parece que temos amigos, colegas, ou conhecidos em comum, o que não é grande coisa, uma vez que vivemos numa cidade de abrangência mediana. Em lugares assim, principalmente nesta região do país, você inevitavelmente fica sabendo de pequenos grandes feitos e fatos dos colegas que são amigos do conhecido do seu vizinho.

O que vou relatar aconteceu antes da minha ida definitiva à Leeds. Lembro que eu residia na zona leste da cidade, área nobre, Rua Albertino Alfredo, casa grande, muro alto, jardim extenso e convidativo para festas que nunca aconteceram ali.

Houve um dia em que ele saiu na sua bicicleta azul celeste (se locomovia sempre assim, grande feito para alguém que vivia numa cidade com um litoral de cerca de 24 quilômetros de extensão e temperaturas médias anuais de 26 °C) para ir uma festa que começaria no Centro Acadêmico da universidade, e se estenderia à casa de M.P.E. (sim, ela possuía três nomes próprios). Muitos relatam que o viram no Centro Acadêmico, em seu estado sempre aparente de alteração das faculdades mentais. Todavia, não compareceu para a festa na casa de M.P.E., o que a deixou muito desapontada. Assim como a maioria das estudantes da área de humanas, M.P.E. estava interessada no rapaz e creio que havia uma movimentação afetiva que estaria para ocorrer na tal festa. Enfim, sumiu por aquela noite e madrugada. Não deram muita atenção por se tratar justamente dele.

No dia seguinte, foi noticiado em todos os jornais da cidade que a maior parte das residências localizadas na zona leste havia sido alvo de vandalismo. Eu não precisei deste recurso para tomar conhecimento dos fatos. Acordei com os gritos da minha mãe. Nos muros internos da casa, inúmeros pentagramas vermelhos, pichados com escritos logo abaixo de cada um: Svaboda, Trud, Pobed, Narodn, Zvezda. Mamãe achou tratar-se de algo relacionado à bruxaria ou satanismo, mas logo identifiquei naqueles escritos a língua russa, e nas estrelas a simbologia comunista. Os moradores do bairro acionaram a polícia, que cumpriu seu papel especulativo, mas jamais acharam o responsável.

Contaram-me que quando questionado por seus amigos sobre seu paradeiro na noite anterior, Ernesto (este era seu nome) respondeu: “casas!”

domingo, 8 de agosto de 2010

Sobre compartilhar segredos com velhas loucas

“Até esta hora, tu deverás estar amando”, uma boca desdentada gritou na sua direção, com um dedo enrugado e incisivo a apontar sucessivamente. E assim a amaldiçoou, enquanto a tarde caía junto ao sol. Mas a moça não deu ouvidos, não a conhecia. Tratava-se de uma velha qualquer, uma moradora de rua desvairada. Poderia ser uma cigana dada a misticismos, mas a palavra ceticismo descrevia esta jovem.

Um decêndio passou, deixou sua bolsa cair numa esquina da Rua da Independência, devia ser umas 16:43h, e por causa deste deslize encontrou o homem da sua vida. Grande ironia terem se conhecido num lugar nomeado com sinônimo de liberdade. Não importou o chá pago, a dissertação oral sobre as obras obscuras de Nabokov, coincidentemente escritor preferido de ambos, a crítica implícita à delicadeza da melodia e harmonia de Chopin (compositor favorito dela), ou os cabelos cor de fogo dele, despenteados, e curiosamente odiava ruivos. Nada importou. Estava irremediavelmente apaixonada e não havia escapatória. Entregou-se. Aliás, entregaram-se.

16:51h, e um lustro transcorreu. Juntos, cruzaram a Rua Brigadeiro Agapito Bello com a da Independência. Recostada num canto de muro encontraram a anciã enlouquecida de cinco anos atrás. Reconhecendo-a, lembrou-se imediatamente da praga proferida aos gritos sem dentes. Estancou. O ruivo não entendeu. A moça reagiu enfiando a mão na bolsa e procurando por moedas. Desistiu ao perceber que a velha, apesar de suja, trajava linho e não possuía recipiente para esmolas. A doida apenas sorria imbecilmente, mostrando a gengiva destituída de dentes. Jamais acreditariam na imprecação abençoada, e o significado e sua extensão teriam sentido apenas para uma única pessoa, ela, a moça. Percebeu que a melhor reação seria fazer absolutamente nada e prosseguir o caminho, a vida. A moça decidiu que seria o segredo mais esplêndido da sua existência, e nada mais justo que o fosse compartilhado com aquela desconhecida.