segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sobre a natureza das coisas

Aos 40 e poucos me descobri no papel clichê do ‘ex-yuppie com crise de meia idade’, reavaliando meu estilo de vida e refletindo sobre perdas, ganhos, identidade, crenças, enfim, algo que minha terapeuta chamou de auto-atualização. Tentei escapar um pouco do lugar-comum, e troquei a compra do automóvel conversível por uma viagem ao extremo noroeste africano. Uma fuga deliberada do american way of life, das selvas de concreto, dos celulares, da internet, de mim mesmo.

Uma vez naquelas terras exóticas, após doze dias dedicados a visitar templos e mesquitas, mercados, cidades milenares – e sem esquecer os passeios de camelo no Saara – abandonei meu orgulho agnóstico, um recalque do puritanismo protestante no qual fui criado, e aquiesci mediante a possibilidade de conversar com um mufti, sábio árabe que goza de grande prestígio por ponderar sobre condutas terrenas e conhecer as leis espirituais.

Para tanto, percorri a região de Oujda, e após andar algumas horas por vielas tortuosas que se dispunham labirinticamente, cheguei a um beco onde se encontrava a morada de Aban Abdul-Alim, o Ancião. Com a ajuda do meu intérprete, soube que este distinto senhor cego e sem dentes me passou a seguinte mensagem, quando me prostrei perante sua figura:
O motivo era um só, apesar de acontecer de maneiras diferentes. Uns antes, outros depois, mas cada ser humano estava destinado a descobrir o sentido da vida um dia, e assim sendo, morrer logo em seguida.

Após um longo minuto de silêncio, mais por respeito do que qualquer outra coisa, questionei as dúvidas que fervilharam em minha cabeça, fomentadas pelas palavras do velho: sobre as crianças que morriam ainda no útero da mãe, sobre a expectativa de vida humana ser razoavelmente semelhante em todo o mundo e o fato do próprio Aban Abdul-Alim, um sábio, gozar de idade tão avançada.

Este retrucou, seguindo a ordem das perguntas: a primeira, respondeu-me com outras interrogações, “o que seria vida?” “quando realmente ela começaria?”; por sua vez, com relação ao segundo questionamento, ele não saberia dizer se tal revelação seria algo inerente ao desenvolvimento do ser humano, o qual, assim como os dentes que caem - um acontecimento do curso natural das coisas - estaria destinado a chegar em determinada idade, ou se certas pessoas, de fato, eram suficientemente mais sagazes que outras. Algumas levariam apenas dois anos para tomarem tal resolução, outras levariam pouco mais de um século. E com estas últimas palavras, respondeu minha terceira pergunta. Apesar de ser detentor de tal informação, ele não teria sido capaz de, até então, elucubrar sobre o sentido da vida.

Saí do casebre que abrigava Aban Abdul-Alim, o Ancião, com minhas perturbações primeiras cedendo lugar para inquietações de outra ordem. Passou-se meio século desde o encontro e ainda me deparo, vez por outra, meditando sobre tais questões metafísicas. Encontro-me com quase um século de vida e, dito isto, não é preciso acrescentar mais nada.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sobre coçar o pé debaixo da mesa

Culpou uma Tinea pedis que a afligiu durante aqueles dois primeiros meses do ano de mil novecentos e oitenta e sete, mas vovó Maria José acusaria sua falta de etiqueta.

Na mais fina doçaria da cidade de C.G., a moça M.L. e a mencionada micose comemoravam algum evento importante da vida adulta e profissional. Juntos, à mesma mesa, também estavam os pais e as irmãs da jovem, a avó Maria José, duas amigas íntimas e Dr. C.C.L., um parente afastado que os pais de M.L. coagiam contato por ser senhor distinto e gozador de boa posição social, daqueles que não precisam freqüentar a pós-graduação para obter tal título.

A certa altura da noite, a frieira de M.L. despertou, anunciando sua presença por meio de uma coceira violenta. Como não pudesse agüentar tal manifestação, discretamente se descalçou, e começou a esfregar seu pé de forma frenética na primeira superfície dura que encontrou. Durante uns trinta segundos sentiu o êxtase, e quando o alívio atingiu seu pico, diminuiu aos poucos a intensidade e o ritmo da fricção. Enquanto seu pé ainda pousava em cima da superfície dura, a moça sentiu a mesma se mexer. Disfarçou um sobressalto e olhou discretamente em baixo da mesa. Para sua surpresa, o que julgara ser um suporte do móvel, era, na verdade, um sapato social masculino. Atônita, M.L. olhou em volta, e à sua frente o Dr. C.C.L. a fitava com os olhos perdidos.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre duas primas

Aos 17 anos e em ocasião do tradicional festival Sete Sóis Sete Luas, a mãe de Amália conheceu o marido, herdeiro lisboeta de um influente comércio têxtil, e em menos de seis meses casaram-se na capital portuguesa, fazendo-a sua morada. Um ano após o matrimônio, nascia a primeira e única filha do casal Basurto. Por sua vez, Mafalda foi concebida durante o mesmo festival Sete Sóis Sete Luas, o que obrigou o casamento quase imediato entre seus pais. Do parto difícil, veio a menina e a impossibilidade de outros rebentos.

Mafalda Carrasqueira e Amália Basurto eram primas, e suas mães, irmãs. As suas raízes remontam a vila de Azinhaga, onde os pais, avós e ascendentes mais distantes subsistiam da agricultura. A primeira foi criada no campo, enquanto a outra cresceu na cidade.

No período das férias escolares ou mesmo nos feriados nacionais, numa tentativa de resgatar e tornar vivas as origens do tronco familiar materno, os pais de Amália achavam de bom investimento sempre despachá-la para Azinhaga. Entretanto, a simplicidade da vida campesina expressa por meio da ignorância de sua gente, do escasso uso da eletricidade, do amontoado de mosquitos, dos cheiros naturais dos animais e das próprias pessoas, geraram desde a mais tenra idade sentimentos de animosidade em Amália. Além do mais, esta, que em Lisboa possuía uma cama só para si, quando ia à pequena vila era forçada a dividir o leito estreito e duro com Mafalda. A troca de alguns chutes e cotoveladas precediam a dormida, a qual, ironicamente, era regida e abençoada por João-Pestana.
A birra, muito mais teatral do que verdadeira, sempre a acompanhava apenas durante os primeiros dias no campo. Ao final da sua estada, contudo, poder-se-ia dizer que Amália sentia certo pesar em deixar a casa dos tios e a cama da prima, apesar de jamais expressar verbalmente tal sentimento.

Em 1978, Mafalda Carrasqueira se casou com o agricultor João Sousa, que viria a ser seu companheiro para a vida toda. Em 1980, Amália Basurto se casou com Pedro Delgado. Em 1986, com Antônio Duarte. 1989, Luís Cardozo. 1994, José Pereira. 2002, Nuno Paredes. 2003, João Torres. 2007, Fernando Gomes. Aos amantes, a lista não compete.

Quando questionada a respeito dos seus casamentos fracassados em série e dos inúmeros casos extraconjugais, Amália sempre respondia que jamais conseguiria deitar e dormir sozinha, mas que nenhuma das companhias masculinas, até então, lhe agradara.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sobre o colecionador de nucas femininas

Alguns diziam se tratar de um caso clássico de cafajeste, e outros o chamavam de ninfomaníaco. A verdade é que ele colecionava cheiros de nucas femininas. Seu acervo apresentava precisamente 797 odores catalogados, os quais foram consecutivamente registrados ao longo de 27 anos de coleta e gravados nas folhas de um caderno com capa de couro preto. Constava em cada ficha a descrição minuciosa do fragor, os dados acerca do pescoço (idade, cor, umidade), o dia da coleta e como ela havia ocorrido.

 É necessário frisar que certas características o diferenciavam de um colecionador de selos, mapas, canetas, bonecas ou coisa que o valha. Primeiramente, a excepcionalidade da sua coletânea, uma vez que nunca havia chegado ao seu conhecimento a existência de outra pessoa que cultivasse os mesmos interesses ao ponto do registro, e em segundo lugar, dadas as características da sua coleção, a impossibilidade de troca.

O seu primeiro exemplar foi registrado aos seus 12 anos de idade e a nuca em questão pertencia a uma colega de colégio que se sentava sempre a sua frente. Naquele dia, fatidicamente, a menina pôs o cabelo em coque no meio de uma aula de Geografia, pois eram dias de abril e de muito calor. Desavisada e surpreendida, a garota assustada caiu da cadeira após sentir uma espécie sucção ardente em área tão sensível. Enquanto a sala estourava em risos, o colecionador anotava na capa de seu livro as características do seu objeto de interesse. Assim como a primeira, ele seria capaz de relembrar cada detalhe de seus quase 800 exemplares, como o número 586, por exemplo, que pertencia a uma senhora negra e gorda que estava sentada em um banco da praça Clementino Procópio em ocasião de viagem do colecionador em questão. 

De acordo com o psicanalista Marciano Gatian, este comportamento pode ser explicado devido a uma fantasia do exercício de sua masculinidade; quando cheira uma nuca feminina, o faz como uma forma de protesto pela sua "inveja do clitóris". O padre Adelino Trento define como conduta pecadora e amoral. Edite Passarinho, sua vizinha, o considera uma ameaça pública. Katyana Silva, profissional do sexo, relata como a experiência mais delicada e gentil já vivida. 

 Julgar é deveras fácil, porém seus críticos desconheciam ou desconsideravam a grande solidão relegada ao colecionador de nucas femininas. Despojado de compreensão alheia, isolado em sua coleção, privado de relações mais profundas, sua única companhia era um objeto de couro contendo a descrição de 797 odores, além da iminente e ansiosa possibilidade de conseguir o próximo exemplar.

domingo, 17 de julho de 2011

Sobre Jean-Paul

Jean-Paul seria só mais um dentre milhares de Jean-Pauls a morarem naquela Paris pós-guerra, exceto pelo fato de sua peculiar ocupação: ladrão de covas. Era especialista em arrombar catacumbas e jazigos familiares para surrupiar os pertences de grande valor monetário, os quais eram enterrados com os defuntos da alta sociedade parisiense. Porém, sua discrição e respeito não permitiam deixar os sepulcros abertos. Pá e cimento também compunham seu kit de serviço. Após os furtos, seguia-se a higiene dos objetos, e seqüencialmente sua venda ao mercado negro ou a algum chefão mafioso preocupado em presentear sua senhora. A soma angariada lhe servia para pagar o aluguel da água-furtada que habitava no subúrbio, obter algumas garrafas de Chardonnay e amores comprados.

Batia ponto quase que diariamente no cemitério do Père-Lachaise, e apesar de ser um solitário em sua jornada de trabalho, Jean-Paul, volta e meia, deparava-se com proto-góticos, necromantes (e várias outras designações que este prefixo pode abarcar), estudantes de medicina e anatomistas. Mediante tal diversidade, códigos de conduta foram tacitamente desenvolvidos para o tino social entre tais indivíduos. Possuíam em comum a polidez, empatia e sigilo para com os interesses de cada qual, porém nenhuma palavra era trocada, apenas olhares furtivos. Todos fugiam dos coveiros e dos enterros.

Na terceira semana após a chegada do inverno, Jean-Paul percebeu uma presença que lhe era estranha até então. Terrivelmente feio, sendo sua principal característica o estrabismo, o desconhecido possuía um ar de intelectual e sempre portava um bloco de notas, caneta e cachimbo, o qual, dependendo do dia, era substituído por cigarros. Com o passar das semanas, notou não se tratar de um proto-gótico, visto não trajar sempre vestimentas pretas, muito menos pertencer à trupe dos necros ou médicos, porquanto sua única atividade se limitava a vislumbrar o horizonte e anotar algumas palavras na caderneta, fato que deixava Jean-Paul em completa curiosidade.

Em certa ocasião, como se não pudesse mais sustentar o desejo de saber das atividades do misterioso homem, o gatuno aproximou-se impulsivamente, sem saber exatamente como engatar uma conversa. Eis as palavras tropeçadas e ditas por Jean-Paul ao desconhecido de rosto horrendo e olhos assimétricos:

"Difícil agüentar os outros, não é mesmo? Por isso que prefiro os cemitérios, calmos e tranqüilos, onde todos os seus moradores estão ardendo nas grelhas do inferno."

Para grande frustração do ladrão de covas, o estranho se reservou a tão somente arquear as sobrancelhas, entreabrir os lábios e escrever alguma coisa em seu livrete de registros.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sobre as viúvas nômades do deserto

Os ocidentais as chamam de viúvas nômades do deserto, mais pela incapacidade de pronunciar o verdadeiro nome da tribo (algo em dialeto árabe parcialmente desconhecido), do que qualquer outra coisa. Cerca de 70 mulheres compõem o grupo, as quais vagam há milênios pelo Deserto da Núbia. Por meio de um controle de natalidade altamente rigoroso e eficaz, as suas tradições não permitem que o número de componentes ultrapasse esta razão. 

 Recentemente, graças a uma difícil coleta de amostras sanguíneas, visto serem pessoas muito ariscas, descobriu-se que possuem origem 48% núbia, 2% de outras etnias (mongol e grega), enquanto a outra metade é desconhecida. É impossível determinar a procedência do cromossomo Y, uma vez que não têm (permitem) integrantes do sexo masculino. Especula-se que, nos primórdios, estas mulheres matassem os bebês homens, mas que, após terem entrado em contato com missionários cristãos, no século XVI, adotaram o costume de abandoná-los em mesquitas ou templos.

Quando uma viúva morre, e outra completa seu quinto ano de fertilidade, ocorre o que se pensa chamar “Nahjda”, ritual que consiste em invadir um vilarejo, eleger um espécime macho, acasalar com ele (alguns antropólogos defendem que estes homens são estuprados), e, por fim, castrá-lo. O padrão de escolha é estético. 

Não há relatos de relações homossexuais entre as viúvas Alguns estudiosos defendem a hipótese de que as viúvas nômades do deserto travaram relações sociais com os mais diversos povos que por aquela região passaram, afirmando que os princípios de orientação astronômica foram por elas ensinados. Em troca, herdaram a parte desconhecida que lhe cabem no DNA.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Sobre aeroporto de mosquito

Elegi suco de laranja servido em caixinhas como uma das piores invenções da história humana, tudo isto enquanto uma comissária de bordo o servia ao careca que estava numa cadeira duas fileiras na frente da minha. Atrevo dizer que isso só perderia para a bomba atômica e a pochete. Então pensei que eu estava salvo da calvície graças à mamãe, porque meu pai já não tinha cabelos aos vinte e oito.

Um pulo involuntário do assento prenunciou a chegada da turbulência, e, logo em seguida, o suco voando diretamente na cara do calvo, além da queda das aeromoças serventes, que agourou a intensidade da mesma.

Atenção senhores passageiros, por favor, afivelem os cintos de segurança. Estamos atravessando uma zona de chuva e turbulência.

Frustrei-me porque nem tive a oportunidade de pedir à morena bonita de fardinha (tentei imagina-lá sem calcinha, quando a vi caída no chão por causa da sacolejada) um refrigerante de guaraná.
Outro solavanco, desta vez bem mais forte. Algumas crianças começaram a chorar. Não sei se os prantos eram piores que a tensão de alguns sussurros que surgiam de cadeiras atrás da minha. Antes do medo, lembrei das aulas de biologia na sétima série, e daquele líquido responsável pelo senso de orientação, que fica dentro do nosso ouvido, no labirinto, ou alguma microestrutura do tipo. Antes do medo, a vertigem. A vertigem precede o medo, e aqueles segundos de pânico acomodavam minha filosofia barata, pensamento solto em momento de terror. Eu não queria pensar que eu não queria morrer, mas já estava pensando.
As máscaras de oxigênio caíram e eu ouvi um barulho, um apito, que não soube distinguir se era do avião ou do meu ouvido.

Minha mãe me salvou da calvície, mas poderia fazer absolutamente nada agora. As chances de a aeromoça morena ser a mulher da minha vida, algum dia, se reduziam a zero a cada minuto. Ao menos o careca não conseguiu beber aquele maldito suco de laranja.