quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sobre coçar o pé debaixo da mesa

Culpou uma Tinea pedis que a afligiu durante aqueles dois primeiros meses do ano de mil novecentos e oitenta e sete, mas vovó Maria José acusaria sua falta de etiqueta.

Na mais fina doçaria da cidade de C.G., a moça M.L. e a mencionada micose comemoravam algum evento importante da vida adulta e profissional. Juntos, à mesma mesa, também estavam os pais e as irmãs da jovem, a avó Maria José, duas amigas íntimas e Dr. C.C.L., um parente afastado que os pais de M.L. coagiam contato por ser senhor distinto e gozador de boa posição social, daqueles que não precisam freqüentar a pós-graduação para obter tal título.

A certa altura da noite, a frieira de M.L. despertou, anunciando sua presença por meio de uma coceira violenta. Como não pudesse agüentar tal manifestação, discretamente se descalçou, e começou a esfregar seu pé de forma frenética na primeira superfície dura que encontrou. Durante uns trinta segundos sentiu o êxtase, e quando o alívio atingiu seu pico, diminuiu aos poucos a intensidade e o ritmo da fricção. Enquanto seu pé ainda pousava em cima da superfície dura, a moça sentiu a mesma se mexer. Disfarçou um sobressalto e olhou discretamente em baixo da mesa. Para sua surpresa, o que julgara ser um suporte do móvel, era, na verdade, um sapato social masculino. Atônita, M.L. olhou em volta, e à sua frente o Dr. C.C.L. a fitava com os olhos perdidos.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre duas primas

Aos 17 anos e em ocasião do tradicional festival Sete Sóis Sete Luas, a mãe de Amália conheceu o marido, herdeiro lisboeta de um influente comércio têxtil, e em menos de seis meses casaram-se na capital portuguesa, fazendo-a sua morada. Um ano após o matrimônio, nascia a primeira e única filha do casal Basurto. Por sua vez, Mafalda foi concebida durante o mesmo festival Sete Sóis Sete Luas, o que obrigou o casamento quase imediato entre seus pais. Do parto difícil, veio a menina e a impossibilidade de outros rebentos.

Mafalda Carrasqueira e Amália Basurto eram primas, e suas mães, irmãs. As suas raízes remontam a vila de Azinhaga, onde os pais, avós e ascendentes mais distantes subsistiam da agricultura. A primeira foi criada no campo, enquanto a outra cresceu na cidade.

No período das férias escolares ou mesmo nos feriados nacionais, numa tentativa de resgatar e tornar vivas as origens do tronco familiar materno, os pais de Amália achavam de bom investimento sempre despachá-la para Azinhaga. Entretanto, a simplicidade da vida campesina expressa por meio da ignorância de sua gente, do escasso uso da eletricidade, do amontoado de mosquitos, dos cheiros naturais dos animais e das próprias pessoas, geraram desde a mais tenra idade sentimentos de animosidade em Amália. Além do mais, esta, que em Lisboa possuía uma cama só para si, quando ia à pequena vila era forçada a dividir o leito estreito e duro com Mafalda. A troca de alguns chutes e cotoveladas precediam a dormida, a qual, ironicamente, era regida e abençoada por João-Pestana.
A birra, muito mais teatral do que verdadeira, sempre a acompanhava apenas durante os primeiros dias no campo. Ao final da sua estada, contudo, poder-se-ia dizer que Amália sentia certo pesar em deixar a casa dos tios e a cama da prima, apesar de jamais expressar verbalmente tal sentimento.

Em 1978, Mafalda Carrasqueira se casou com o agricultor João Sousa, que viria a ser seu companheiro para a vida toda. Em 1980, Amália Basurto se casou com Pedro Delgado. Em 1986, com Antônio Duarte. 1989, Luís Cardozo. 1994, José Pereira. 2002, Nuno Paredes. 2003, João Torres. 2007, Fernando Gomes. Aos amantes, a lista não compete.

Quando questionada a respeito dos seus casamentos fracassados em série e dos inúmeros casos extraconjugais, Amália sempre respondia que jamais conseguiria deitar e dormir sozinha, mas que nenhuma das companhias masculinas, até então, lhe agradara.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sobre o colecionador de nucas femininas

Alguns diziam se tratar de um caso clássico de cafajeste, e outros o chamavam de ninfomaníaco. A verdade é que ele colecionava cheiros de nucas femininas. Seu acervo apresentava precisamente 797 odores catalogados, os quais foram consecutivamente registrados ao longo de 27 anos de coleta e gravados nas folhas de um caderno com capa de couro preto. Constava em cada ficha a descrição minuciosa do fragor, os dados acerca do pescoço (idade, cor, umidade), o dia da coleta e como ela havia ocorrido.

 É necessário frisar que certas características o diferenciavam de um colecionador de selos, mapas, canetas, bonecas ou coisa que o valha. Primeiramente, a excepcionalidade da sua coletânea, uma vez que nunca havia chegado ao seu conhecimento a existência de outra pessoa que cultivasse os mesmos interesses ao ponto do registro, e em segundo lugar, dadas as características da sua coleção, a impossibilidade de troca.

O seu primeiro exemplar foi registrado aos seus 12 anos de idade e a nuca em questão pertencia a uma colega de colégio que se sentava sempre a sua frente. Naquele dia, fatidicamente, a menina pôs o cabelo em coque no meio de uma aula de Geografia, pois eram dias de abril e de muito calor. Desavisada e surpreendida, a garota assustada caiu da cadeira após sentir uma espécie sucção ardente em área tão sensível. Enquanto a sala estourava em risos, o colecionador anotava na capa de seu livro as características do seu objeto de interesse. Assim como a primeira, ele seria capaz de relembrar cada detalhe de seus quase 800 exemplares, como o número 586, por exemplo, que pertencia a uma senhora negra e gorda que estava sentada em um banco da praça Clementino Procópio em ocasião de viagem do colecionador em questão. 

De acordo com o psicanalista Marciano Gatian, este comportamento pode ser explicado devido a uma fantasia do exercício de sua masculinidade; quando cheira uma nuca feminina, o faz como uma forma de protesto pela sua "inveja do clitóris". O padre Adelino Trento define como conduta pecadora e amoral. Edite Passarinho, sua vizinha, o considera uma ameaça pública. Katyana Silva, profissional do sexo, relata como a experiência mais delicada e gentil já vivida. 

 Julgar é deveras fácil, porém seus críticos desconheciam ou desconsideravam a grande solidão relegada ao colecionador de nucas femininas. Despojado de compreensão alheia, isolado em sua coleção, privado de relações mais profundas, sua única companhia era um objeto de couro contendo a descrição de 797 odores, além da iminente e ansiosa possibilidade de conseguir o próximo exemplar.

domingo, 17 de julho de 2011

Sobre Jean-Paul

Jean-Paul seria só mais um dentre milhares de Jean-Pauls a morarem naquela Paris pós-guerra, exceto pelo fato de sua peculiar ocupação: ladrão de covas. Era especialista em arrombar catacumbas e jazigos familiares para surrupiar os pertences de grande valor monetário, os quais eram enterrados com os defuntos da alta sociedade parisiense. Porém, sua discrição e respeito não permitiam deixar os sepulcros abertos. Pá e cimento também compunham seu kit de serviço. Após os furtos, seguia-se a higiene dos objetos, e seqüencialmente sua venda ao mercado negro ou a algum chefão mafioso preocupado em presentear sua senhora. A soma angariada lhe servia para pagar o aluguel da água-furtada que habitava no subúrbio, obter algumas garrafas de Chardonnay e amores comprados.

Batia ponto quase que diariamente no cemitério do Père-Lachaise, e apesar de ser um solitário em sua jornada de trabalho, Jean-Paul, volta e meia, deparava-se com proto-góticos, necromantes (e várias outras designações que este prefixo pode abarcar), estudantes de medicina e anatomistas. Mediante tal diversidade, códigos de conduta foram tacitamente desenvolvidos para o tino social entre tais indivíduos. Possuíam em comum a polidez, empatia e sigilo para com os interesses de cada qual, porém nenhuma palavra era trocada, apenas olhares furtivos. Todos fugiam dos coveiros e dos enterros.

Na terceira semana após a chegada do inverno, Jean-Paul percebeu uma presença que lhe era estranha até então. Terrivelmente feio, sendo sua principal característica o estrabismo, o desconhecido possuía um ar de intelectual e sempre portava um bloco de notas, caneta e cachimbo, o qual, dependendo do dia, era substituído por cigarros. Com o passar das semanas, notou não se tratar de um proto-gótico, visto não trajar sempre vestimentas pretas, muito menos pertencer à trupe dos necros ou médicos, porquanto sua única atividade se limitava a vislumbrar o horizonte e anotar algumas palavras na caderneta, fato que deixava Jean-Paul em completa curiosidade.

Em certa ocasião, como se não pudesse mais sustentar o desejo de saber das atividades do misterioso homem, o gatuno aproximou-se impulsivamente, sem saber exatamente como engatar uma conversa. Eis as palavras tropeçadas e ditas por Jean-Paul ao desconhecido de rosto horrendo e olhos assimétricos:

"Difícil agüentar os outros, não é mesmo? Por isso que prefiro os cemitérios, calmos e tranqüilos, onde todos os seus moradores estão ardendo nas grelhas do inferno."

Para grande frustração do ladrão de covas, o estranho se reservou a tão somente arquear as sobrancelhas, entreabrir os lábios e escrever alguma coisa em seu livrete de registros.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sobre as viúvas nômades do deserto

Os ocidentais as chamam de viúvas nômades do deserto, mais pela incapacidade de pronunciar o verdadeiro nome da tribo (algo em dialeto árabe parcialmente desconhecido), do que qualquer outra coisa. Cerca de 70 mulheres compõem o grupo, as quais vagam há milênios pelo Deserto da Núbia. Por meio de um controle de natalidade altamente rigoroso e eficaz, as suas tradições não permitem que o número de componentes ultrapasse esta razão. 

 Recentemente, graças a uma difícil coleta de amostras sanguíneas, visto serem pessoas muito ariscas, descobriu-se que possuem origem 48% núbia, 2% de outras etnias (mongol e grega), enquanto a outra metade é desconhecida. É impossível determinar a procedência do cromossomo Y, uma vez que não têm (permitem) integrantes do sexo masculino. Especula-se que, nos primórdios, estas mulheres matassem os bebês homens, mas que, após terem entrado em contato com missionários cristãos, no século XVI, adotaram o costume de abandoná-los em mesquitas ou templos.

Quando uma viúva morre, e outra completa seu quinto ano de fertilidade, ocorre o que se pensa chamar “Nahjda”, ritual que consiste em invadir um vilarejo, eleger um espécime macho, acasalar com ele (alguns antropólogos defendem que estes homens são estuprados), e, por fim, castrá-lo. O padrão de escolha é estético. 

Não há relatos de relações homossexuais entre as viúvas Alguns estudiosos defendem a hipótese de que as viúvas nômades do deserto travaram relações sociais com os mais diversos povos que por aquela região passaram, afirmando que os princípios de orientação astronômica foram por elas ensinados. Em troca, herdaram a parte desconhecida que lhe cabem no DNA.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Sobre aeroporto de mosquito

Elegi suco de laranja servido em caixinhas como uma das piores invenções da história humana, tudo isto enquanto uma comissária de bordo o servia ao careca que estava numa cadeira duas fileiras na frente da minha. Atrevo dizer que isso só perderia para a bomba atômica e a pochete. Então pensei que eu estava salvo da calvície graças à mamãe, porque meu pai já não tinha cabelos aos vinte e oito.

Um pulo involuntário do assento prenunciou a chegada da turbulência, e, logo em seguida, o suco voando diretamente na cara do calvo, além da queda das aeromoças serventes, que agourou a intensidade da mesma.

Atenção senhores passageiros, por favor, afivelem os cintos de segurança. Estamos atravessando uma zona de chuva e turbulência.

Frustrei-me porque nem tive a oportunidade de pedir à morena bonita de fardinha (tentei imagina-lá sem calcinha, quando a vi caída no chão por causa da sacolejada) um refrigerante de guaraná.
Outro solavanco, desta vez bem mais forte. Algumas crianças começaram a chorar. Não sei se os prantos eram piores que a tensão de alguns sussurros que surgiam de cadeiras atrás da minha. Antes do medo, lembrei das aulas de biologia na sétima série, e daquele líquido responsável pelo senso de orientação, que fica dentro do nosso ouvido, no labirinto, ou alguma microestrutura do tipo. Antes do medo, a vertigem. A vertigem precede o medo, e aqueles segundos de pânico acomodavam minha filosofia barata, pensamento solto em momento de terror. Eu não queria pensar que eu não queria morrer, mas já estava pensando.
As máscaras de oxigênio caíram e eu ouvi um barulho, um apito, que não soube distinguir se era do avião ou do meu ouvido.

Minha mãe me salvou da calvície, mas poderia fazer absolutamente nada agora. As chances de a aeromoça morena ser a mulher da minha vida, algum dia, se reduziam a zero a cada minuto. Ao menos o careca não conseguiu beber aquele maldito suco de laranja.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sobre o outro lado da mitologia

A mitologia romana esqueceu-se de narrar a expressa inveja de certos deuses e a vaidade velada de Februus, ambas despertadas na ocasião em que os humanos, à título de homenagem, designaram ao segundo mês do calendário gregoriano o nome de Fevereiro. Graças à consagração da cultura ocidental intertropical, em eras mais tarde, o período estaria associado a paixões de verão, mar, sol, festividades, preguiça, biquínis, suor, rede e brisa, fazendo todos – inclusive as divindades – esquecerem das chuvas torrenciais e das tardes que teimavam se estender pela noite.

Não se contentou com simbologia das primaveras nas zonas temperadas, e por isso Cupido reivindicou a parte que lhe cabia ao mês. “Tamanha insolência humana, vejam só. Exijo interferência, afinal em tal zona tórrida é estação de inclinação e afetos demasiadamente violentos, e eu sou o diretamente responsável por tudo isto!”. Procurou Júpiter para lhe falar, o qual não deu ouvidos por saber que Cupido era o mestre das malícias e perturbações. Frustrado, o menino alado correu para os braços da mãe Vênus.

Também se consumiu em despeito aquele responsável pela ebriedade e pelos excessos, especialmente os sexuais. “É um etrusco – exclamou Baco referindo-se à Februus, numa tentativa de persuadir uma intervenção de Júpiter – a loucura se apossou dos romanos. Vê-se por meio de tremendo paradoxo. Entregaram-se ao cristianismo, mas prestam homenagens aos deuses pagãos. Se assim o é, então que sejam ídolos mitológicos clássicos!” E diante de tanta picuinha ufanista, o deus dos deuses desejou que Baco jamais tivesse saído da barriga da sua perna.

Logo, o insatisfeito Cupido pediu ajuda ao seu grande amigo Zéfiro, o vento do oeste, para que assim espalhasse infâmias acerca do rei dos deuses, e o contrariado Baco fez murchar todas as videiras, o que causou abstinência no panteão, algo que afetou o próprio Júpiter. Cansado da cisma, convocou assembléia geral extraordinária, onde explicou os motivos para a não intromissão.

Caros, se a questão é coerência, nada mais justo que seja concedido à Februus tal homenagem

Zunzunzuns.

"Calados! Calados! – bradou Júpiter – Para os humanos, este é o período do 'adeus à carne', como vocês sabem, tal temporada também é conhecida por Carnaval. Por analogia, esta despedida pode ser considerada como a morte, bem como a purificação na quaresma. Não precisa explicitar quais os desígnios de Februus."

Tão profundo foi o silêncio, que o barulho do sorriso mudo de Februus se tornou um brado, a sua única manifestação perante toda a confusão.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sobre vias expressas

Ninguém sabe precisar exatamente quando a primeira espécime surgiu, mas estimam que tenha sido junto com o aparecimento das cidades, que remete ao período longínquo da Antiguidade. De acordo com Clístenes de La Calle (professor adjunto da Universidade Livre de Bayeux, o qual integra uma vertente progressista de historiadores e ensina a disciplina “Arqueologia Urbana II” na instituição supracitada), as primeiras ruas passaram a existir há mais de dez mil anos.

Resgate Constantinopla ou vá à Paris, não importa, é certo que as ruas também falam suas próprias línguas e que seu léxico varia conforme o período do dia. Pela manhã são buzinas, cantadas baratas sem critério, auto-falantes, anunciadores de gás, alho, cebola, ou qualquer outro condimento que você não entende no primeiro grito do vendedor. À noite exprimem-se por meio de vidros que quebram, vozes sem donos com seus tons ébrios, miados, latidos, caminhões de lixo, gemidos, gritos, grilos.

As ruas igualmente se personificam. E segundo a vivência de seus usuários, elas poderiam metamorfosear-se em diferentes cores e contornos, travestidos em personalidade. Boas ou más.
Com fins didáticos para a sua matéria, o prof. Dr. Clístenes de La Calle em sua aula inaugural de cada semestre, solicitava sempre aos alunos que estes atribuíssem vida às ruas de sua experiência. Apesar da repetição da tarefa, o professor sempre se surpreendia com o produto dos seus estudantes. O trecho abaixo, a título de exemplo, contém parte do relato de N.F.D.A., aluna da turma de 2003.

“(...)
As de São Paulo, estranhas mulheres de constante flerte. Putas de histórias engraçadas que gostaria sempre de observar sem me envolver.
As de Curitiba, crianças quase puras, infantes quase inocentes, como sonhos e planos de uma vida futura.
As de Brasília, belas madrastas sadistas, das oportunidades perdidas, que roubam sem o mínimo pudor o doce de seus enteados.
As de Campina Grande, tão maternais como um berço. O braço e acalanto certo para qualquer tormento.
As de João Pessoa, melhores amigas a guardarem os maiores segredos de primeiras experiências, aquelas que me fizeram atingir o pleno sentido da palavra liberdade. “

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Sobre guerras e relações humanas

Um sobrenome se torna alcunha própria facilmente, e o seu era Barbosa, cujo comportamento servia de instrumento nemésico para a humanidade – do seu bairro. Pelejava verbalmente contra todos, e fazia-os de inimigos diários, os quais eram facilmente vencidos pela impaciência e aflição argumentativa. As batalhas versavam desde os assuntos mais simples, como o clima, até os mais complexos, como a conjuntura política na Polinésia, ou pretensos plágios cristãos de religiões mais antigas.

Passava o dia na rua – o motivo Barbosa jamais confessaria – mas o campo de batalha que mais temia era a casa. A grande afronta era a presença estúpida da mulher. Trinta e oito anos de luta cotidiana. O que fazia de Carmelita sua rival mais ameaçadora era a lealdade submissa e o despojo de amor-próprio, qualidades que nenhum outro adversário possuía. A este caso se aplica uma citação de William G. McAdoo, sobre a impossibilidade de vencer um ignorante com o artifício da argumentação.

Escutava corriqueiramente da esposa “Por deus, você enlouqueceu”, ao que era trivial responder “Deus não existe”, ao passo que a casa era tomada por velas de sétimo dia.
Por mais que procurasse mangas para degustação, após o leite quente das 20:30h, não as encontraria até o raiar do outro dia.
Décadas atrás, no auge do seu vigor, Barbosa era privado do coito durante 5 dias mensais. Mulheres sabem como fechar as pernas. Agora, com a presença da menopausa feminil, ironicamente a força e freqüência sexual declinaram.
Carmelita tomava a mão do marido e a batia forçosamente contra a madeira três vezes, toda vez que o último professava ironicamente uma catástrofe.

O casal sempre suscitou minha curiosidade, e desde que os conheci, duas perguntas passaram a martelar na cabeça. Versavam basicamente sobre os motivos do matrimônio e as razões para a não ocorrência de uma potencial separação. A primeira foi fácil de acertar. Em sua juventude, soube que Carmelita fora a mais bonita do bairro. A Beleza, mesmo se constituindo como atributo de fácil e rápida desmistificação, sempre veio antes da Inteligência.
Quanto à separação nunca ter ocorrido, pressuponho três hipóteses: primeira, o fato de Barbosa pertencer a uma época em que a máxima “até que a morte os separe” se aplicava em forma de axioma aos casamentos. Apesar do seu gênio, não se enganem, sabia muito bem honrar seus votos; segunda, o amor sobrevém a paixão, os quais muitos dizem se tratar de conformação; terceira – a mais absurda, porém incrível de todas – apesar da sua aparente ignorância intelectual, um mero disfarce, Carmelita era a mais sábia entre todos.